Robert Louis Stevenson não escreveu apenas um conto sobre um homem que se transforma em monstro. O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde é um espelho embaçado da nossa própria hipocrisia.
Nele, um cientista respeitável fabrica deliberadamente um alter ego criminoso — não por acidente, mas por desejo. E essa é a verdade que dói: Jekyll não perde o controle. Ele o entrega.
A genialidade de Stevenson está em mostrar que Hyde não é um estranho, e sim a essência não filtrada de Jekyll. O médico londrino não busca redenção; ele quer um álibi químico para sua maldade.
Enquanto Hyde espanca crianças nas ruas, Jekyll mantém suas mãos limpas e seu nome intacto. Um pacto perfeito: o monstro faz o que o doutor sonha em fazer.
Dr. Henry Jekyll, um respeitável médico, e Edward Hyde, sua contraparte monstruosa, representam as duas faces de uma mesma moeda: uma consciente e reprimida, a outra impulsiva e destrutiva. Mas será que Jekyll não desejava, no fundo, a liberdade cruel de Hyde?
Vivemos a mesma mentira. Cultuamos diplomas como se fossem vacinas contra a crueldade, acreditando que um título acadêmico imuniza contra a podridão moral.
Quantos "doutores" escondem seus Hydes atrás de becas e formalidades? O caso da advogada por não dizer "Excelência" no STF; ou Como o escândalo de plágio do ex-ministro da Educação da Alemanha, envolveu plágio da sua tese de doutorado, escancara isso: a razão virou ritual vazio. Exigem reverência não ao caráter, mas ao cargo.
A relação entre Jekyll e Hyde revela mais do que uma cisão acidental. O médico criou deliberadamente o monstro por meio de uma fórmula científica, e ambos compartilham um vínculo perverso: Jekyll herda de Hyde a liberdade para explorar seus instintos mais sombrios, enquanto Hyde herda a fortuna e o status social do médico.
Apesar de tentar separar suas facetas "boa" e "má", Jekyll sentia um desejo oculto pelas ações de Hyde. Isso expõe uma verdade incômoda: a moralidade social muitas vezes esconde anseios primitivos que a razão não consegue extinguir.
Meu sogro, agricultor analfabeto, nunca precisou de um Hyde. Sua ética não depende de fórmulas químicas ou deletreados em latim.
O acúmulo de títulos — "Mestre", "Doutor", "Excelência" — muitas vezes alimenta arrogância, não humildade. Prova disso é a obsessão por formalidades vazias, como a exigência de tratamento reverencial até fora do ambiente profissional.
Enquanto isso, tribunais e universidades abrigam monstros de ternos impecáveis — seus crimes são lavados em linguagem técnica, suas violências chamadas de "necessidades institucionais".
A palavra "aluno" vem do latim alumnus: "sem luz". Ironia cruel. O Iluminismo nos prometeu que a razão nos libertaria da barbárie, mas só criou barbáries mais sofisticadas.
Hoje, um homem não é julgado por caráter, mas por currículo. E assim, como Jekyll, permitimos que monstros agem — desde que assinem com caneta de ouro. Afinal, quantos "Hydes" agem impunemente hoje, protegidos por títulos, cargos ou moralidades convenientes?
Stevenson sabia: o verdadeiro horror não é Hyde, mas Jekyll. O médico que escolhe ser monstro, mas exige que o tratem como santo. A sociedade não mudou. Só aprimorou a fórmula.
O médico é o monstro, e o monstro é o médico. Jekyll não queria destruir Hyde; desejava usá-lo como um avatar para seus crimes, preservando sua reputação intacta.
O autor nos alerta: a racionalidade, quando divorciada da empatia, torna-se uma ferramenta de hipocrisia. O verdadeiro horror não está no monstro visível, mas no médico que o cria — e no sistema que o absolve.
A obra permanece atual não por mostrar um homem que vira monstro, mas por revelar que o monstro sempre esteve ali, vestindo a beca da respeitabilidade.