- O pior deste lugar é a desgraça do cheiro, Beto?
- Além de ser o mais novo, ainda é burro. Cala a boca, Assis. Está querendo dar uma voltinha naquela febre do rato de sala dos horrores? Porra, velho.
- Pelo menos assim eu estaria livre. Livre de vez. Nem para a Terra eu voltaria. – Assis responde com um sorriso discreto.
- Deixa de ser burro, moleque. Se morrer rápido fosse a certeza, até contigo eu iria. Por um acaso tu não escutou Evandro gritando na noite passada? Esqueceu? Esqueceu?
Assis e Roberto não percebem, mas a sentinela está de olho neles há um tempo, vigiando os dois da porta do barracão. As funções no barracão são as mais diversas, elas dependem do comando do gestor local, geralmente é um empresário. Produção de castanha de caju, confecção de roupas, plantio de cana de açúcar, mineração, criação de ferramentas.
Cada campo de concentração ou como são conhecidos oficialmente, de reeducação, possui funções adequadas para o local que estão instalados, características como solo, localização geográfica e períodos de chuva são elementos direcionadores da utilidade para o Governo daquele lugar de sofrimento.
Existe todo um aparato de segurança no local para evitar fugas e rebeliões. Além disso, os presos são incentivados pelos guardas para delatar outros, em troca de alimentos ou trabalhos mais simples. Eles até inventam histórias sobre os demais presos para se dar bem. E os dois irmãos mal sabiam, mas um outro detento denunciou que eles causavam algazarra e incentivaram fugas. E o preço da denúncia foi um mísero pacote de bolachas de maizena.
Quando seres humanos vivem numa condição sub-humana, os freios morais sofrem uma degradação drástica, com o tempo fica natural denunciar os companheiros de sofrimentos ou aqueles que querem fugir. Como se, no íntimo, todos os presos não quisessem a liberdade.
A sirene toca, como já é noite e nenhum guarda falou sobre o cerão, os presos sabem que podem se recolher aos alojamentos. Eles ficam num galpão gigante dividido por madeireis, chamado de canil pelos prisioneiros. As camas são beliches de madeira forradas com uma lona de pano ou com capim seco. Os banheiros foram feitos pelos próprios infelizes que ali ficam, pequenos espaços cercados por restos de entulhos ou pedaços de plásticos.
Ao sair da área de produção, Roberto e Assis recebem orientação de uma sentinela para organizarem na prateleira umas peças e ferramentas de trabalho que ficaram sobre as mesas do barracão.
Enquanto trabalham na arrumação dos objetos, os irmãos alagoanos não percebem a movimentação estranha no barracão, eles são surpreendidos por seis guardas armados com cassetetes e umas armas de choque. Assis recebe quatro pancadas rápidas e fortes na costela e se curva de dor, logo na sequência, sente as pernas dobrarem com uma nova pancada no joelho e, ao cair no chão, é golpeado várias vezes pelos guardas. Um deles diz
- Tá gostando, vagabundo?
Roberto tenta proteger o irmão dos golpes, mas é imobilizado por outros dois guardas e é obrigado a assistir Assis ser espancado brutalmente. A tortura dura cerca de cinco minutos, o chão do barracão parece que foi pintado com tinta vermelha de tanto sangue que há no local. Após o espaçamento, Roberto e Assis são carregados para a famosa Sala dos Horrores, nome dado pelos guardas a um casebre que fica no lado oposto da área permitida aos presos.
Quando entram no local, Roberto de cara percebe o porquê aquele lugar tem esse nome. Semelhante aos calabouços da Idade Média, a Sala dos Horrores é escura, pintada com um verde lodo que faz o lugar perder a cor, e ainda é fétido, possuindo inúmeros aparelhos, correntes nas paredes, mesas com alças para os pulsos e pés, além de cadeiras conectadas a fios e com baldes de metais pelo chão.
Um dos guardas mandou amarrar o irmão mais novo no pau-de arara, uma barra de ferro que fica a uns trinta ou quarenta centímetros do chão, colocada entre caixotes de madeira. Os torturadores colocam Assis enrolado na barra, ficando com os punhos amarrados para trás das costas e com as dobras dos joelhos entre a barra de ferro, parecendo uma concha.
Já Roberto, que, até aquele momento, não sofreu agressões, é amarrado sem as roupas numa cadeira na frente de Assis. Os guardas jogam um balde de água em seu corpo e um deles conecta dois fios nas suas partes íntimas. E aquela sentinela que observava os dois irmãos alagoanos fala ao ouvido de Assis:
- Já que apanhou, está quite. Agora tu vai sentir um cheiro ruim de verdade. O cheiro da carne assando do teu irmão, vagabundo. Ele vai mijar sangue.
Logo, o pobre Assis, todo machucado na surra que tomou, é obrigado a ver o irmão ser eletrocutado na sua frente, ouvindo gritos e mais gritos de dor e desespero. Passados uns instantes, o corpo de Roberto não apresenta mais sinais vitais, com partes escuras do corpo nos locais onde f icaram os fios e com uns chamuscados pelos ouvidos.
Um dos comandantes do Campo de Reeducação que andava pelo local escuta os gritos, entra na Sala e pergunta:
- Até que horas vocês vão ficar com essa palhaçada? Está fazendo a energia do Campo todo oscilar.
Ao olhar para os dois prisioneiros, o supervisor assume um olhar de fúria:
- Mas que febre vocês estão fazendo? Porra, eu tinha escolhido esses dois para mandar para as plantações de vinho no Sul amanhã. Bando de incompetentes. Gastem as suas energias para quando for preciso.
- Mas, senhor. Eles estavam tentando… - diz um dos torturadores.
- Não quero saber, seus filhos de rapariga. Agora vou ter que dar explicações para o coronel e ainda procurar mais dois para mandar. Nas contas são quatro a menos aqui, porque eu tenho que mandar mão de obra para aqueles bostas tomarem seus suquinhos de uva no Sul. O supervisor chega próximo do corpo de Roberto, faz uma expressão de nojo e cobre o nariz com um pano.
- Acaba logo com isso, aproveita que um já morreu e termina com o outro. Como vocês gostam de festas, limpem esse lugar. Quero ver ele brilhando amanhã cedo, não usem mais nenhum prisioneiro. Entenderam?! - E sai do lugar revoltado.
- Sinto muito, vagabundo. Mas o supervisor mandou acabar com a festa. Ordens são ordens. Boa viagem para casa.
E no momento em que o cano da arma do guarda encosta na sua cabeça, Assis teve a certeza que não voltaria mais para a Terra e assim derramou a última lágrima da sua vida.
Pow!
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